Por onde andei, e onde andam vocês…
9 anos desde o último contato. Mais um final de ano, algo desconhecido me força ao passado, e desafiando empatia ao “eu” anterior — tanto se passou que não o reconheço, nem explico o abandono.
Nesse tempo, me orgulho não ter vivido no mesmo lugar por mais de 12 meses seguidos, 4 países, 9 cidades, uma filha, um casamento com tropeços — assistir amizades destinadas à vida, lentamente se tornarem frívolas, desbotarem por completo. Lugares comuns e lembranças distantes misturadas.
Mantenho o gosto por ler, que aos poucos se transformou em algo compartilhado com os caprichos de uma criança de onze anos, que me leva a lugares que de certo não buscaria por conta prórpria.
Escrevo tarde, bebendo vinho; Rubem Braga me perseguiu o dia inteiro, e aqui voltei pra tentar encontrar aquele seu poema, pois já não tenho o livro comigo, aquele que carreguei por anos — se rasgou e desfez em uma mudança qualquer.
Não recordava o nome, senti um súbito desconforto — não faz tanto tempo, recitaria de memória cada um dos poucos poemas do autor, e suas crônicas… já as tive na ponta da língua — onde estão?
“Ontem bebeste em demasia, certo, mas não foi, convenhamos, a primeira nem a milésima vez que hás bebido. Volta portanto a cara, vê de perto a cara, tua cara verdadeira, […] envelhecido, envilecido.”
São Jorge (Kiko Dinucci & Juçara Marçal)
“Guerreio é no lombo do meu cavalo
Bala vem mas eu não caio, armadura é a proteção
Avanço sob a noite iluminado, luto sem pestanejar
Derrubo sem me esforçar, a guarnição
A guimba e a fumaça do meu cigarro
Cega o olho do soldado que pensou em me ferir
Com um sorriso derrubo uma tropa inteira
Mesmo que na dianteira sombra venha me seguir
O gole da cachaça esguicho no ar
Chorando na labuta ouço a corrente se quebrar
E o golpe do destino esse eu sinto mas não caio
Guerreio é no lombo do meu cavalo”
Morre Gabriel García Márquez
Como bem me disse um amigo a poucos minutos: “Morreu Gabo numa quarta-feira chuvosa, como o Coronel Aureliano Buéndia. Só não é outubro ainda….”
http://www.estadao.com.br/noticias/arte-e-lazer,morre-gabriel-garcia-marquez,1155304,0.htm
Li hoje quase duas páginas (Fernando Pessoa)
Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.
Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.
É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.
Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.
Canção da Torre Mais Alta (Arthur Rimbaud)
Mocidade presa
A tudo oprimida
Por delicadeza
Eu perdi a vida.
Ah! Que o tempo venha
Em que a alma se empenha.
Eu me disse: cessa,
Que ninguém te veja:
E sem a promessa
De algum bem que seja.
A ti só aspiro
Augusto retiro.
Tamanha paciência
Não me hei de esquecer.
Temor e dolência,
Aos céus fiz erguer.
E esta sede estranha
A ofuscar-me a entranha.
Qual o Prado imenso
Condenado a olvido,
Que cresce florido
De joio e de incenso
Ao feroz zunzum das
Moscas imundas.
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