Arquivo

Posts Tagged ‘O Óbvio Ululante’

O pior cego (Nelson Rodrigues)


Era a véspera de 1º de Maio. Vou eu pela avenida Rio Branco e, na esquina da Sete de Setembro, cruzo com um marxista. Passo adiante. Mas ele também me vira e correu atrás de mim. Crispa a mão no meu braço: — “Nelson, Nelson!”. Paro. O marxista, velho asmático, está arquejante. Correra cinco metros e parecia agonizar. Diz, explicando a dispnéia: — “Asma é fogo! Fogo!”. Tem o olho enorme do asfixiado.

Sou, por índole, um efusivo. De mais a mais, acho a asma um desses males quase divinos (para outros, sagrada é a epilepsia). E, já que não pudera evitá-lo, fiz-lhe uma festa imensa: — “Como vai essa figura?”. Ajuntei, com um descaro total: — “Estás com uma aparência ótima!”. O outro rosnou: — “Estou com o pé na cova!”. Em seguida, depois de olhar para os lados, cochicha: “Amanhã, não sai de casa! Não sai, percebeu?”.

Qualquer suspense, qualquer mistério, me deslumbra. Já interessado, pergunto: “Mas vem cá. Escuta. Mas o que é que há? O que é que vai haver?”. Olha de novo para os lados; repete: — “Fica em casa!”. A minha perplexidade assume proporções inéditas. Enojado de tanta incompreensão, acrescenta, em tom cavo: — “Lembre-se que amanhã é 1º de Maio!”. E já estendia a mão: — “Adeus”.

Travo-lhe o braço: — “Mas escuta. Amanhã não posso ficar em casa. Tenho o jogo”. O marxista não entende: — “Que jogo?”. Preciso explicar que no Dia do Trabalhador, e aproveitando o feriado, o Flamengo e o Vasco iam fazer um jogão. Desta vez, ele se zangou de verdade: — “Você pensa que a História está preocupada com futebol?”. Retruquei que, se a História não ligava para os clássicos e para as peladas, eu ligava. O marxista me arrasou: — “Fique sabendo que nenhum trabalhador brasileiro — nenhum! — vai a esse jogo!”. Eu ia objetar-lhe não sei o quê, mas já o homem me virava as costas. Ou por outra: — antes de partir, ainda disse: — “Vai haver o diabo!”. Numa impressão profunda, deixei-o partir. O marxista sumiu na primeira esquina.

E o pior é que a sua respiração infeliz de asmático valorizava o suspense e o mistério. Pelo que se desprendia de suas insinuações e de sua dispnéia, o trabalhador não iria ao Estádio Mário Filho. Em vez disso, sairia por aí derrubando bastilhas e decapitando Marias Antonietas. Todavia, o que mais me impressionava era a hipótese de um Flamengo x Vasco para ninguém. Ou por outra: — um Flamengo x Vasco em que seria eu o único e mísero espectador. Todos conhecem o Estádio Mário Filho. Aquilo é uma sibéria de concreto armado, sibéria na qual eu funcionaria como o único siberiano.

No dia seguinte, 1º de Maio, acordo e ainda impressionadíssimo com a conversa da véspera. Depois do almoço, desço e tomo a carona do Marcello Soares de Moura. Iam também o Antônio Moniz Vianna e Raul Brunini. Eu esperava topar, a qualquer momento, com as vítimas da fome, em hordas ululantes. E só via, por toda parte, em delírio, as bandeiras do Vasco e do Flamengo. Mas quem sabe se o sangue não estaria correndo alhures? Fosse como fosse, o clássico teria quatro espectadores, a saber: — eu, o Marcello
Soares de Moura, o Moniz Vianna e o Raul Brunini. Nas imediações do Estádio Mário Filho, passamos por um cavalo morto. Devia ser atropelamento. O falecimento do nobilíssimo animal foi a única nota realmente patética do 1º de Maio carioca.

Saltamos no último andar do Estádio Mário Filho. Do alto, vimos tudo. E, súbito, me deu vontade de gritar como um astronauta: — “A multidão é azul! A multidão é azul!”. Não todas, evidentemente. Tenho visto
multidões negras. Mas a de Flamengo x Vasco era de um azul espantoso, jamais concebido. Ah, quando o locutor do ex-Maracanã anunciou a renda. O nosso marxista se enganara em apenas 416 milhões de cruzeiros velhos.

Mas foi no gol do Vasco, aos quatro minutos de jogo, que me ocorreu esta verdade súbita e inapelável: — o pior cego é o marxista brasileiro. Ele nada vê e vê menos ainda o próprio Marx. Aliás, não só o marxista. Todos nós fazemos um Marx que nada tem a ver com o próprio. Já contei o que me disse um amigo meu, num espasmo de admiração: — “O verdadeiro Cristo é Marx!”.

Essa idealização vem sendo feita por todo este século. Dia após dia, retocamos e enriquecemos a sua figura com virtudes sublimes. Chegamos a adorar a sua furunculose. O pior é que, sem o saber, temos construído o anti-Marx, a negação do Marx. O verdadeiro Marx está nas cartas.

As cartas, as cartas! Mente-se mais num artigo, num livro, num discurso. Mas as cartas de Marx têm a autenticidade de sua furunculose. É aí que ele se abre para o mundo. E elas são tão dramáticas que ninguém as comenta. Há todo um silêncio mundial. O único que ousou tratar desse texto espantoso foi Madariaga. Mas que espécie de Marx emerge de sua correspondência?

Gostaria de perguntar aos meus amigos marxistas: — “Que diriam vocês de um sujeito que fosse, ao mesmo tempo, imperialista, colonialista, racista e genocida?”. Pois esse é o Marx de verdade, não o de nossa fantasia, não o do nosso delírio, mas o sem retoque, o Marx tragicamente autêntico. Para ele, o povo miserável deve ser destruído por ser miserável. Diz: — “povos sem história”, “povos anãos”, “escórias” etc. etc. A guerra generalizada destruirá todas essas pequenas nações macrocéfalas, de modo a riscar do mapa o seu nome, até.

E verificamos, então, que o santo, o Cristo, é, antes de mais nada, um impotente do sentimento. Por esse lado, as cartas são demoníacas. Como se sabe, a desgraça de Satã é sua impossibilidade de amar. O abominável “Pai da Mentira” não gosta de ninguém. Daria a metade de suas trevas por uma lágrima. E, por todas as cartas de Marx, não há um vislumbre de amor e só o ódio, o puro ódio. Para ele, há “povos piolhentos”, “povos de suínos”, “povos de bandidos”, que devem ser exterminados.

Ele e Engels batem palmas para o imperialismo britânico e norteamericano. Eis o que eu gostaria de notar: — são cartas que Hitler, Himmler, Goebbels assinariam, sem lhes riscar uma vírgula. E os dois têm uma convicção nítida, nítida da superioridade do povo alemão. Mas lendo Marx e Engels, eu penso no Vietnã, em Cuba, e também no Brasil. Por que não estaríamos inseridos entre os “povos piolhentos”? Somos ou não somos piolhentos? Há populações inteiras no Brasil que vivem numa imundície de ratas. Se nos conhecessem, Marx e Engels diriam que devemos ser riscados do mapa, até. Faltou humanidade a um e outro para sentir que os “povos piolhentos” merecem mais amor por isso mesmo, porque são piolhentos.

[6/5/1968]

Onde estão os negros (Nelson Rodrigues)

Lembro-me de Crime e castigo e vejo Raskolnikov, o assassino. Houve um momento em que, após a morte das velhas, ele precisou voltar ao local do crime. Passou pela rua, pela porta e, se não me engano, subiu a escada. A partir de então, até os criminosos de O Dia e da Luta Democrática fazem o mesmo. Quando se livram do flagrante, eles voltam, sim, ao local do crime, batidos por não sei que nostalgia hedionda.

Pois eu também volto a Guimarães Rosa, como se ele fosse a vítima, e eu o seu Raskolnikov. Eis o meu pânico: — que aqui se instalasse, em torno de sua figura e do seu nome, a unanimidade. Meu Deus, o formidável artista não podia virar um Pacheco. Nem teríamos o direito de erigir-lhe uma estátua do “Brasil chorando o gênio”. Era preciso que algum pardal desgarrado sujasse, liricamente, a sua testa de bronze.

Dei graças quando veio o Cony e abriu uma racha na apoteose crítica e unânime. Disse ele ou, por outra, repisou uma velha opinião: — “É o novo Coelho Neto!”. Simultaneamente, em conversa com Hélio Pellegrino, o Mário Pedrosa falou também em “Coelho Neto”. Reynaldo Jardim explodiu: — “Um bolha! Um bolha!”. Em seguida, volta o Cony e, embora reconhecendo o “grande escritor”, apanha, a mãos ambas, na obra do Rosa, não sei quantas frases “acacianas”.

Ótimo, ótimo. A unanimidade tinha uma escandalosa goteira. E Guimarães Rosa seria um pobre-diabo se não suscitasse uma única e escassa dúvida. Vocês se lembram de uma frase rosiana, que mereceu uma imprensa enorme. Se não me falha a memória, é assim: — “O homem morre para provar que viveu”. Imediatamente, o Cony pôs a boca no mundo: — “Acácio, Acácio!”. Se alguém dizia isso, o morto não era tão cadáver, respirava literariamente. (Mas ninguém fez, que eu saiba, o grande elogio de Guimarães Rosa, ou seja, o elogio de sua torre de marfim. Num belo artigo, Antônio Callado a negou. Mas é inútil resistir à evidência estarrecedora. Vou usar uma expressão de minhas crônicas esportivas: — a “torre de marfim”, em Guimarães Rosa, é o óbvio ululante. Obsedado como um Flaubert, estava mais interessado na cadência de uma nova frase do que em todo o Vietnã.

Outros estilistas vão babar seus pileques nos botecos ideológicos da madrugada. Ele, nunca. E por que duvidar da torre de marfim se ele próprio a confessava, sem nenhuma pusilanimidade?) Foi por vezes acaciano? Ai daquele que não teve o seu momento de Acácio. De vez em quando, somos Acácios e somos Pachecos. E confesso: — tenho medo, não dos que negam Guimarães Rosa, mas dos que o admiram. Há um certo tipo de admiração que compromete ao infinito.

Quem não se lembra da visita de Sartre ao Brasil? Há quem diga: — “A maior inteligência do século”. Um gênio, um gênio. Não admira, pois, que tenha feito, entre nós, um sucesso de Frank Sinatra. Não sei se de Frank Sinatra ou de Sarrasani, quando de sua primeira audição. Ah, Sartre! Nas suas conferências a platéia o lambia com a vista. Lambia sim, e explico: parecíamos, ao ouvi-lo, uns trezentos cachorros velhos. Pois um dia, se não me engano na ABI, Jean-Paul Sartre respira fundo e diz o seguinte: — “O marxismo é inultrapassável”. Eu estava lá e vi o efeito. A nossa semelhança com um cachorro velho aumentou consideravelmente. E por que disse ele isso? Porque olhava para a gente, como se nós fossemos um horizonte de cretinos.

Ali, eu descobria que há admirações abjetas. Mas esse “marxismo inultrapassável” é uma opinião de torcedor do Bonsucesso. Nada impede que dentro de quinze minutos o marxismo seja vilmente ultrapassado. Seria iníquo falar em Pacheco, em Acácio. Torcedor do Bonsucesso ou mais: — Luvizaro. Eis o nome certo, o nível exato: — Luvizaro. Naquele momento, “a maior inteligência do século” era um Luvizaro.

Já que falamos de Sartre, continuemos nele. Uma noite, lá foi ele, com a Simone de Beauvoir de namorada, ao apartamento de um colega. Era o mesmo desprezo. Olhava para os presentes como quem diz: — “Que
cretinos! Que imbecis!”. Em dado momento vem a dona da casa oferecer-lhe uma tigelinha de jabuticabas. O Sartre pôs-se a comê-las. Mas, coisa curiosa. Ele as comia com certo tédio (não estava longe de achá-las também cretinas, também imbecis). Até que, na vigésima jabuticaba, pára um momento e faz, com certa irritação, a pergunta: — “E os negros? Onde estão os negros?”. O gênio não vira, nas suas conferências, um mísero crioulo. Só louro, só olho azul e, na melhor das hipóteses, moreno de praia. Eis Sartre posto diante do óbvio. Repetia, depois de cuspir o caroço da jabuticaba: — “Onde estão os negros?”. Na janela um brasileiro cochichou para outro brasileiro: — “Estão por aí assaltando algum chauffeur”.

“Onde estão os negros?” — eis a pergunta que os brasileiros deviam se fazer uns aos outros, sem lhe achar a resposta. Não há como responder ao francês. Em verdade, não sabemos onde estão os negros. E há qualquer coisa de sinistro no descaro com que estamos sempre dispostos a proclamar: — “Somos uma democracia racial”. Desde garoto, porém, eu sentia a solidão negra. Eis o que aprendi do Brasil: — aqui o branco não gosta do preto; e o preto também não gosta do preto.

Alguém poderia dizer a Sartre, sem violentar a verdade: — “Temos aí um negro, um único negro, o Abdias do Nascimento”. E, de fato, que eu saiba, é o nosso único negro confesso e radiante de o ser. A cor, em Abdias, é uma perene tensão dionisíaca. Digo isso e volto à minha carteira da escola pública. Quando me vi diante da diretora, da papada da diretora, comecei a tremer. Eis o meu pavor: — que me expulsassem por causa dos piolhos e das lêndeas.

Passei o resto da aula da cabeça baixa. A professora obrigou-me a ficar sozinho num banco (os outros sentavam-se de dois em dois). E eu me sentia um pequenino leproso. Depois veio o recreio. Lá vou eu com a minha banana. Comecei a chupá-la e todos os olhos me perseguem. Vi o menino que levava sempre sanduíche de pão com ovo. (Ainda agora, quando me lembro, como pão com ovo para me resgatar da humilhação da banana.) Mas falei de Guimarães Rosa, Sartre, Luvizaro e dos negros do Brasil. Eis o que eu queria dizer: — quase no fim do recreio estava eu no fundo do pátio. E, de repente, vem uma pretinha lá da minha aula. Pára diante de mim, ri para mim. Olha para um lado, para outro e para trás. Estávamos sós, maravilhosamente sós. Seu riso não tem os dentes da frente. Diz baixinho: — “Eu também tenho piolhos, lêndeas”.

[18/12/1967]