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A Involuntária Viagem de Anton Schievelbeyn Pelas índias Orientais (Hermann Hesse)

Que seja, em parte, para eterna remembrança de meus cometidos pecados e sua consumada expiação e, mormente, para honra e glória de Deus Nosso Senhor, de tudo o que hei guardado e assentado de minhas viagens e peregrinações por longes mares e exóticas terras, conforme ao Senhor aprouve, vou dar fiel relação. Sobretudo, das muitas e notáveis caridades que o Senhor, em Sua benevolência, praticou em m i m , grande e mísero pecador. Primeiramente, devo narrar com brevidade as minhas circunstâncias e destinos antecedentes, quando, mui jovem ainda, naveguei pelo mar e fui testemunha de estranhas e terríveis aventuras. Quando cheguei ao Cabo da Boa Esperança, onde os flamengos estavam tenazmente melhorando sua recente colônia, ora com liberdade, ora com acolhida hostil, deles fui hóspede e recebi generosas provas de hospitalidade, pois tão doente eu estava que não me atrevia sequer a pôr fé na minha sobrevivência. Mas recuperei-me e toda a minha juvenil animação voltou. Ajudava prazeroso os holandeses, trabaIhava com afinco e, mais tarde, casei com minha cara esposa, que era então uma senhora viúva. Tornei-me um homem abastado, possuía casa, terras de boa semeadura e de pasto, e duzentas ovelhas africanas, brancas e pretas. Ora, tendo conseguido tão considerável prosperidade, e como de mim não tinham sido inteiramente banidos os pendores levianos da mocidade, o demônio tentou-me de novo e assim me tornei um presunçoso, só pensando em comer e beber, em gozar uma boa vida e trabalhar pouco. Tinha bons e numerosos amigos que me acompanhavam alegremente, mas a minha mulher não gostava disso, me advertia com sensatas palavras e me recriminava dizendo: ” C o m o pudestes, caro esposo, tornar-vos tão preguiçoso e perverso? Esperais, acaso, que Satã vos conquiste a alma e a percais nas chamas da perdição eterna?” Eu, porém, não dava ouvidos. Nos momentos em que suas recriminações realmente me agastavam, sentia vontade de bater-lhe, mas, acima de tais impulsos, estava o muito medo que lhe tinha. Ela era extraordinariamente robusta e trabalhadora, muito afeita aos rudes trabalhos da lavoura, cuidava zelosamente das terras e gados e rezava sempre ao Senhor, com muitos e desgostosos suspiros. Mas tudo era em vão pois eu tudo desperdiçava, consumia e desbaratava em meus vícios perdulários, que o Senhor me perdoe em Sua grande misericórdia, amém. Ora, como a minha cara esposa era mulher de muita esperteza e invenção, e como não visse em m i m desejos de arrependimento que a consolassem, maquinou uma ardilosa solução que passo a contar. Certa noite em que eu estivera comendo e bebendo com três bons companheiros e na casa não havia mais do que alegria, cantos e risos, fui deitar-me, altas horas, embriagado. Seria desnecessário dizer que logo dormi profundamente. Por isso me assustei quando, de madrugada, senti que me puxavam e arrancavam do leito. Comecei gritando em altos brados e vi minha mulher entrar no quarto, acercar-se de mim e dizer: “Aquietai-vos, que tudo se faz com meu consentimento. Nada tendes a recear”. Havia quatro homens fortes que me vestiram a roupa, em gestos de grande pressa, tiraram-me para fora de casa, sentaram-me numa carroça e me ataram com sólidas cordas. Creio que qualquer outro homem, em tal vicissitude, ficaria tão terrivelmente apavorado quanto eu. Perguntei o que estavam fazendo comigo. Minha boa esposa chorou muito e disse, com triste semblante: “Tereis de despedir-vos agora”. Despedime e beijei-a, em altos prantos. Os homens subiram na carroça, sentaram-se a meu lado e não disseram palavra. Seguimos, em trote largo, na direção do porto, soltaram-me do banco e levaram-me para bordo de um lugre holandês, entregando-me ao capitão. Colocaram-me uma carta na mão, gritaram adieu e desceram para terra. Tentei logo segui-los mas fui agarrado e tive de permanecer a bordo, em grande aflição. Mais tarde, entregaram-me ainda um pequeno baú. A uma hora da tarde, ouviu-se o tiro de largada e o lugre zarpou para o mar. Vieram então buscar-me, disseram os serviços de bordo que eu tinha de fazer e tornei-me um marinheiro, o que, aliás, já fora quando moço mas estava muito longe de pensar em sê-lo de novo. Esse dia, que me parecia ser o mais triste de minha vida, foi o vigésimo terceiro do mês de maio do ano da graça de m i l seiscentos e cinqüenta e oito. Logo soube pelos meus companheiros que o lugre vinha do seu porto de origem, nos Países Baixos, e estava na rota de Batávia. Carregava diversas mercadorias e também tinha alguns passageiros, entre eles o Dr. Walter Schultz, de Amsterdã, físico e homem de muita ciência, a quem fiquei, mais tarde, devendo a vida. Na primeira hora de folga, abri a carta que era dirigida “ao meu amado e mui estimado esposo A n t o n Schievelbeyn” e que dizia o seguinte: “É mister que partais, o que deveras me entristece, mas não vejo como pudesse ser diferente. A gula e a luxúria em que vivíeis não condiziam com os deveres de um bom cristão e muito receei de que vossa alma estivesse condenada às penas do inferno. Não poderia eu desejar tal destino ao meu caro esposo e, por isso, mandei que vos pusessem nesse navio, para que vossos vícios carnais se percam e aprendais de novo a trabalhar. Com a ajuda de Deus, tenho a certeza de que ficareis bom de novo e, no vosso regresso, sereis acolhido com muita alegria. Orai bastante e vos peço que me mandeis uma carta de Batávia.” Ficou, pois, devidamente esclarecido que tudo não passara de um ardil de minha esposa. Isso desgostou-me muito, amaldiçoei-a pelo torpe embuste e resolvi nunca mais voltar. Viajaria por terras desconhecidas e permaneceria em cada uma delas o tempo que me aprouvesse. Endureci meu coração e logo recuperei o habitual bom humor. Só me desagradavam os pesados trabalhos de bordo. Comecei então fazendo amizade com os tripulantes, o que me deu mais ânimo. Todo bom marinheiro, quando está muito tempo em terra, fica deprimido e nostálgico, mas logo que salta para um bote e rema até o seu navio, ganha alma nova e sua alegria cresce à medida que se afasta de terra firme. Eu começava também a sentir a mesma coisa, porque o ambiente era de boa camaradagem e quase acreditava já não ter sido senão marinheiro toda a minha vida. Se eu fosse contar tudo o que passei e aconteceu comigo durante essa viagem, talvez não conseguisse acabar nunca. Tentarei, pois, ser breve. Quando estávamos a 39 ou 40 graus do Pólo Sul, começaram soprando uns perigosos ventos de oeste. Fazia muito frio e o céu estava coberto de nuvens escuras de maus presságios, as quais se desfaziam muitas vezes em chuva grossa ou nevascas sobre nós. Porém, os tripulantes mais experimentados diziam que era um vento favorável, pois nos empurraria mais depressa para as índias Orientais. Na verdade, o lugre corria assustadoramente veloz sobre o mar encapelado, cobrindo aproximadamente umas quarenta e cinco milhas por dia, durante quatorze dias. Então aconteceu o que meu coração prenunciava. Um terrível tufão se abateu sobre nosso navio, que se chamava Orcan; a bússola girava como doida e era impossível ouvirmo-nos uns aos outros. A aflição era tanta que todos gritaram: afundamos! afundamos! Todos rezávamos com muito e sincero fervor, certos de que nossas preces poderiam ser ouvidas apesar dos uivos medonhos da tempestade: Senhor! Senhor, ajudai-nos! Por aí se vê como estávamos completamente desesperados. Finalmente raiou a madrugada e, como por encanto, a tormenta amainou e a ventania abrandou, como se os raios do sol a tivessem derretido e afogado no mar. Porém muitos tripulantes adoeceram, sentiam muita febre e convulsões, e os dois médicos que viajavam a bordo não eram suficientes. Grande pecador que sou, fui um dos primeiros a cair doente e, apavorado, pensei que chegara a minha hora. Quis então redimir-me e passei horas rezando e suspirando, muito contrito, confessando minhas culpas. Mas Deus abençoara os remédios que o Dr. Schultz me dava e, para grande espanto meu, sarei seis dias depois. Recuperei a minha alegria e esqueci tudo. Entrementes, o filho de um rico mercador foi acometido de raiva, atirou-se na água e, embora o procurássemos com afinco, desapareceu para sempre. Pouco depois, apanhamos ventos contrários do sudeste e o Orcan não avançava, como se tivéssemos pegado uma calmaria. Depois de rondarmos largo tempo, conseguimos, enfim, aproar à baia de Sillebar, em Sumatra. Não posso relatar tudo o que ai nos aconteceu, mas desejo apenas mencionar que os Índios, de uma tribo chamada Orankay, foram traiçoeiros e falsos. Era uma terra fértil onde cresciam nozes indianas, figos, bergamotas e outros frutos, mas nada conseguimos receber, além de um pouco de água doce. Os nossos bons intérpretes, que tinham ido a terra para comprar leite e ovos, foram mortos pelos índios. Zarpamos de novo e, já em mar alto, fomos outra vez colhidos por violentos vendavais que nos obrigaram a lançar âncora, o que num dia aconteceu nada menos de sete vezes, e já estávamos no mês de setembro. Mas, finalmente, no dia 5 de outubro, fundeamos diante da mui famosa cidade de Batávia. O senhor guarda-mor subiu a bordo para ver se tínhamos mercadorias escondidas. E vieram muitos chineses, que viviam em grande número na cidade. Compraram-nos mercadorias e trouxeram nozes, alfarroba, limões, figos, e de tanto comer fiquei outra vez doente, durante três dias. Tivemos então de descarregar o lugre, a fim de seguirmos depois para Banda, a terra da noz-moscada. Porém, decidi ficar na belíssima Batávia. Recebi o meu soldo e saltei em terra. Dias depois, chegou ao porto um navio com destino à Holanda. O capitão precisava de homens e perguntou se eu queria engajar-me. Era uma boa oportunidade para regressar e ajustar contas com minha mulher, mas eu era teimoso e, além disso, a cidade de Batávia parecia-me um delicioso paraíso e resolvi ficar mesmo por lá. Admirei, sobretudo, os diligentes chineses. Usam o cabelo fantasticamente comprido, o que é um antigo costume desse povo pagão. E se alguém lhes corta os cabelos, passa a ser tão odiado pelos chineses que nada de bom da parte deles lhe poderá advir. Também os vemos jogando assiduamente e qualquer um deles é capaz de perder em pouco tempo todos os seus haveres, seus escravos e escravas, até sua mulher e filhas, que os ganhadores logo vendem como escravas, guardando as mais bonitas para serem suas concubinas. Quando isso lhes acontece, arrancam os pêlos das barbas em grande desespero e ficam tão pelados que quem os vir pela primeira vez julgará que são mulheres, e muitos marinheiros voluptuosos já foram enganados por causa disso. Os chineses enterram seus mortos num lugar especial, fora da cidade, em redor de uns templos com telhados e portas arqueados, onde depositam imensos pratos com iguarias e longas liras de papel pintado, com o que pretendem subornar o diabo. Os Índios daqui são completamente diferentes. Muitos são com freqüência torturados na roda, por ordem de seus amos brancos e chineses, e fumam muito ópio (uma erva perigosa) até ficarem completamente fora de si. Então correm pelas ruas e gritam Amok!, o que na lingua deles quer dizer que matarão qualquer um que lhes apareça. E a verdade é que matam muita gente quando ficam possessos e depois são punidos na roda, porquanto a justiça da terra não tolera essas loucuras pagãs. Lembrei-me agora que na carta me foi pedido que enviasse novas de Batávia à minha esposa. Trazia sua carta sempre comigo mas não queria escrever-lhe, pois ainda sentia muito rancor em meu peito e estava decidido a abandoná-la definitivamente. Quanto mais me recordava de meu antigo conforto e fácil manutenção, mais me revoltava o ardil com que minha esposa me expatriara à força. Decidi hospedar-me numa estalagem onde viviam muitos marinheiros de várias nações — holandeses, alemães, franceses e outros. Levavam uma vida ociosa e só embarcavam quando precisavam de dinheiro para beber e jogar. Fui bem recebido e logo passei a fazer parte do alegre grupo, nada me faltando para comer e beber. Também havia jogo o dia todo, muito barulho e bebedeiras, e grande número de bailarinas indianas e chinesas, tocando harpa e fazendo exóticas danças que muito excitavam a malta. Também apresentavam comédias com máscaras medonhas e gritos assustadores. Desgraçadamente, devo confessar que fui induzido por um velho marinheiro a provar o veneno da erva pagã, o ópio, e fiquei muito doente; quando me curei nunca mais quis fumar essa droga maldita. Nessa estalagem, que pertencia a um holandês, havia uma serva indiana, de nome Sillah, muito bonita e esbelta de corpo, tez morena mas não muito escura. Eu gostava muito dela mas Sillah não queria saber de marinheiros. Ela era muçulmana e nascera na cidade de lapare. Muitas vezes passeei nela cidade, ora sozinho, ora na companhia da malta; vi muitas e assombrosas raridades, templos, lugares sagrados, árvores e plantas estranhas, palmeiras de leque e cravoárias. As semanas passaram e o meu dinheiro acabou até o último dobrão, derretido como neve em março. Mas eu não estava disposto a voltar a servir como marinheiro. Voltei à estalagem pensando no que fazer e encontrei Sillah. Dirigi-lhe galanteios sumamente lisonjeiros e perguntei-lhe se não gostaria de me dar um beijo. Respondeu que não: só eu casando com ela. Ri-me muito e deixei-a partir. Em janeiro, a maior parte dos meus companheiros voltava a embarcar, espalhados por diferentes navios. Despedimo-nos com grandes provas de amizade e tive vontade de chorar. Fiquei completamente só, sem dinheiro, sem saber que rumo tomar. Nesses dias tristes, abordei novamente Sillah e perguntei-lhe se estava disposta a casar comigo. Eu não contara a ninguém que não era solteiro, que era casado há muitos anos com aquela que era a causadora de meu angustioso transe. A moça respondeu que sim. Porém, não poderíamos casar em Batávia e teríamos de ir viver em outra ilha. Assim, procurei serviço n u m dos navios que estavam no porto e engajei-me num galeão chamado Henriette Louyse, que zarpava para Amboina. Levávamos arroz e açúcar e no retorno carregaria noz-moscada e especiarias para Batávia. Partimos no dia 7 de fevereiro, esperando eu encontrar bom trabalho na Real e Benemérita Companhia das índias Orientais, uma ambição que logo se realizaria. Do que aconteceu nesta viagem limito-me a contar que sofremos grossas tempestades e corremos sérios perigos, como no arquipélago de Sonda e outros lugares; às vezes, julgávamo-nos prestes a ir a pique e rezávamos (menos a minha Sillah, que era de crença muçulmana); e até os marinheiros mais corajosos, que costumam ser também os maiores pecadores, ora praguejavam, ora rogavam a Deus que nos acudisse. Vi muitos chorarem lamentavelmente. Perdemos doze homens, entre eles um nobre, que era primo do governador de Tarnaten, uma pequena ilha onde existe uma montanha que vomita fogo. O nome dele era Korss e foi tragado pelas águas. Enfim, após todas essas provações, avistamos terra no dia 24 de maio. Amboina está construída à sombra da Fortaleza de Victória. Aí saltei com a minha formosa Sillah. O galeão abasteceu-se de água e mantimentos e logo continuou viagem para outras ilhas. Sillah e eu discutimos o que fazer. Ela já me dissera que, em caso de necessidade, estava disposta a abandonar o paganismo. Mas concluímos ser preferível ocultar das gentes o nosso verdadeiro estado. Não nos casamos mas eu sempre dizia que Sillah era minha mulher e não foi preciso ela abandonar sua crença turca. Por esse motivo. Deus Nosso Senhor me procurou mais tarde e castigou-me com justa severidade. Apresentei-me ao governador Hutsat, na Fortaleza de Victória, e pedi-lhe que me arranjasse um ofício. Depois de ter-lhe contado uma história falsa sobre mim, ofereceu-me uma horta e uma pequena casa de junco, na qual eu e minha indiana fomos morar. No princípio foi bom, pois estávamos longe de perigos. Tudo corria bem, e Sillah sabia cuidar de um homem. Tínhamos o que comer todo dia, e depois do almoço deixava-me ficar na cabana, um pouco entediado. Sillah trabalhava na horta colhendo coco, sagu e cravo. Vivemos juntos dessa maneira por quase um ano. Com o tempo comecei, porém, a ficar arrependido de tão errante vida. Sentia saudades da minha fazenda nas faldas da Montanha da Mesa e uma ânsia cada vez maior de voltar a casa. Apesar de agora nada me faltar, sentia-me estranhamente inquieto e insatisfeito. Raramente comia outra coisa além de sagu e pirão, e também peixe de salmoura. Cansei-me de tão monótona comida e perdi o apetite. Também já me saciara de Sillah e não mais copulava com ela, censurando-me asperamente por ter coabitado com uma paga herética. Após várias tentativas frustradas, consegui subir sozinho, em março de 1660, a bordo de um navio holandês, sem ser visto. Era um veleiro que estava carregando noz-moscada para Batávia. Fiquei muito alegre quando vi que nos afastávamos cada vez mais do porto. Desejei de todo o coração muita sorte e paz a Sillah, e já me via de volta ao Cabo e à minha legítima esposa. Mas, em minha ingenuidade, não pensara nos desígnios de Deus. Em breve se abatiam sobre nós ventos contrários, era impossível fazer uso das velas e tivemos de lançar ferro continuamente. Pouco depois acabou a água potável e começamos a passar terríveis provações. Muitos adoeceram, outros lamentavam-se, choravam e gemiam confrangedoramente. Nesse terrível desespero descobrimos, de súbito, uma ilha. Ancoramos ao largo e arriamos com presteza um bote onde cabiam onze homens, sendo eu um deles. Remamos vigorosamente rumo a terra mas as costas eram tão rochosas e escarpadas que não encontramos lugar para varar o bote e tão violenta era a ressaca que temíamos que o bote virasse e se desfizesse de encontro às rochas, destruindo completamente as nossas esperanças. Porém, alguns de nós sabíamos nadar, inclusive eu, e conseguimos chegar a uma praia. Só um dos meus companheiros morreu afogado nos imensos vagalhões da ressaca. Logo corremos para um pequeno riacho, louvamos a Deus e cada um bebeu tanta água quanto podia. Depois, voltamos correndo à praia, a fim de chamarmos os que ficaram no bote. Mas ele já não mais ali estava onde o havíamos deixado e não sabíamos se fora levado pelo vento ou tragado pelo mar violento. Gritamos, berramos a plenos pulmões, mas foi tudo em vão. Nesse momento, sentimo-nos terrivelmente assustados, lançando-nos ao chão e assim ficando por longo tempo, como mortos insepultos. A situação era deveras desesperadora e não poderíamos sobreviver por muito tempo, quanto mais pensar em rever terras habitadas. Até hoje não pude saber qual foi o destino do nosso bote e acredito piamente que tenha afundado. Assim ficamos cinco homens na praia deserta, gritando ainda por mais duas horas, clamando em altas vozes e olhando o mar tempestuoso que nos separava do mundo. Aconselhamo-nos sobre o que fazer e, não achando solução, permanecemos um dia e uma noite naquele lugar e quase morríamos de fome por nada encontrarmos para comer. Passado algum tempo, um de meus companheiros, de nome Koellen, disse que não queria continuar ali de braços cruzados e que deveríamos partir em busca de alimento pelo interior da ilha. Eu estava de acordo com ele, e também um outro marinheiro de nome Karlsen, mas os dois restantes não queriam sair da praia, esperançosos no regresso do barco. Então despedimo-nos, com muito afeto e comoção, deixando os dois na praia e partimos para o interior da ilha. Por todos os lados encontrávamos apenas rochas estéreis e íngremes, comemos as folhas de uma árvore desconhecida para matar a fome e fortalecer o corpo. Subimos penosamente os rochedos escorregadios, cruzamos terríveis abismos, sob o bramido de poderosas cataratas e no dia seguinte caímos desfalecidos, sem forças para avançar mais em tão inóspita natureza. A fome nos maltratou odiosamente e eu teria ficado muito agradecido aos céus se me enviassem uma tigela de pirão da boa Sillah. Estendemo-nos inanimados sobre os rochedos, durante toda a noite; víamos a morte certa nos rondando e, em nossa aflição, apelamos para a misericórdia de Deus. Nunca uma oração cristã foi dita em vão e desconheço um caso em que as preces ao Senhor .sejam completamente infrutíferas. O nosso bondoso Pai escutou nossos lamentos no ermo e, pela manhã, sentimo-nos armados de novo ânimo e caminhamos em outra direção. Encontramos algumas raízes e ervas, bebemos em rios perigosos, sem cuidar de saber se neles havia jacarés ou não, e acercamo-nos novamente da costa, mas num ponto diferente daquele que havíamos deixado dias antes. Após tantos perigos e tormentos, o coração de cada um de nós pulou de júbilo quando avistamos um barco de pescador encalhado na praia. Logo descobrimos um atalho entre as rochas, por onde seguimos com alvoroço. Na orla do mato encontramos uma choupana de pescadores e, dentro dela, um velho índio que se alimentava apenas da pesca. Quando nos viu aparecer de súbito, o sangue gelou-se-lhe de susto, pois estávamos tão exaustos, famintos e andrajosos que mais parecíamos almas penadas do que criaturas v i vas, além de que o ancião jamais vira brancos por aquelas paragens. O meu companheiro de nome Karlsen dirigiu-se-lhe cortesmente em malaio e contou-lhe nossas desditas. O eremita serviu-nos arroz e peixe seco e nós agradecemos ao Senhor essa inesperada graça. Comemos cautelosamente, pois nossas tripas estavam muito ressequidas do prolongado jejum e um excesso de alimento poderia nos matar. O eremita instruiu-nos sobre as artes da pesca e, já rcconfortados, lançamo-nos ao mar na sua pequena canoa e pescamos com muito êxito. Permanecemos na companhia desse bom índio durante vários meses, pescando e secando o peixe sobre as rochas. Plantamos um pouco de arroz e tremoço e não passamos necessidades. Mas cada dia que passava a nossa tristeza era mais pesada, pois minguadas eram as nossas esperanças de poder abandonar a ilha e regressar a outras terras e à nossa pátria. Tínhamos as roupas em farrapos, os cabelos e as barbas estavam muito compridos, em suma, parecíamos mais três selvagens ou demônios da floresta do que seres cristãos e civilizados. Passávamos dias inteiros sem proferir palavra, acocorados na praia olhando o mar e chorando em silêncio, sem encontrarmos consolo. Em uma noite de chuva e forte ventania, deitamo-nos todos na choupana, acendemos uma pequena fogueira e não conseguimos dormir. Então, um dos meus companheiros levantou-se, jogou um galho nas chamas e propôs que cada um contasse uma história de aventuras, começando ele por contar a sua. Depois tocou a vez do meu outro companheiro e nunca na minha vida eu escutara histórias tão terríveis como nessa noite de tempestade, pois ambos t i nham sofrido muito, tinham conhecido naufrágios, ataques de corsários, doenças, fome, e percorrido nações e povos estranhos em muitas e desvairadas terras de que eu não tinha notícia. Mas quando narrei fielmente as minhas aventuras, os meus companheiros caíram sobre m i m , dando-me pontapés e socos, chamando-me de hcrege, malvado e adúltero. Eu gritei e daí em diante não falei nem quis ouvir mais nada. Dei-me conta de minha depravação e, ajoelhado no escuro, chorei e rezei com veemência. Então, os meus dois companheiros ajoelharam-se também ao meu lado e rogamos em voz alta que Deus nos desse um meio de sair daquela ilha e nos permitisse voltar à nossa terra, pois já tínhamos sofrido resignadamente nossa cota de miséria, aflição e infortúnio. O reconhecimento de meus pecados confrangia-me o coração como se um rochedo me esmagasse o peito e roguei aos meus companheiros que me perdoassem, pois Deus nos estava castigando tão duramente por minha culpa, que era o mais ímpio e malvado dos três. Eles consolaram-me carinhosamente, perdoaram-me e ainda me ajudaram com orações, intercedendo em meu favor j u n t o aos seus santos protetores. Quando o tempo amainou, fomos novamente explorar a ilha mas não encontrávamos nada que nos fizesse entrever uma saída. Tampouco nos atrevíamos a avançar demais no mar com a frágil canoa do eremita. Duas vezes avistamos navios, louvamos o Senhor e gritamos e acenamos mas tudo foi em vão. Jogávamo-nos desesperados na praia, molhando a areia com nossas lágrimas quentes. Mais alguns meses passaram e, numa tarde serena, o bondoso eremita índio morreu, para nossa grande e sincera dor, e sepultamo-no cristãmente, pensando que a ele devíamos nossa vida. Colocamos sobre sua campa uma cruz de ébano, madeira muito abundante na ilha. Em nosso desespero, como nenhum de nós quisesse continuar naquela selvática e solitária ilha, após muitas orações fervorosas, decidimos partir na pequena canoa do ancião. Bem sabíamos quão poucas eram as esperanças de cruzar o oceano com vida mas preferíamos tentá-lo a ficar apodrecendo até que o Senhor se decidisse levar-nos. Embarcamos então na canoa, pusemos-lhe dentro algum peixe seco, arroz e sagu, e içamos uma pequena vela. Assim largamos para o alto-mar, sem esperança de chegar a outras terras, porém confiantes em encontrar, pelo menos, um navio que nos recolhesse. Após remarmos dois dias, vimos formarem-se imensas nuvens negras puxadoras de água, assim chamadas porque parecem chupar a água do mar para seu pesado ventre e que entre os marinheiros têm o nome de tornados. Quando vimos esse espetáculo correndo perdemos toda a coragem, lançamo-nos de bruços no fundo da canoa e clamamos por socorro. Deus compadeceu-se de nossa tão prolongada miséria e, em sua misericórdia, mandou-nos um galeão inglês. Mas, apenas mal havíamos entrevisto esse instrumento do Senhor e o tornado desabou sobre nós, com espantosa violência e ruido, desmantelando a frágil canoa num remoinho e jogando-nos às ferozes ondas. Ainda ouvi meu amigo Koellen gritar “Que Deus nos acuda”, e preparamo-nos para morrer com resignação. Naqueles instantes de pavor extremo, vi que um bote a remos enviado pelo navio estrangeiro se aproximava rapidamente de m i m com sete homens que, com perigo da própria vida, acorriam temerariamente a salvar-nos. Mas só puderam recolher Koellen e eu, pois nosso terceiro companheiro, de nome Karlsen, já se afogara e os vagalhões, altos como navios, nada nos deixavam ver à nossa volta. Estávamos completamente exaustos e nossos salvadores nos tomaram em seus braços e nos levaram para bordo do galeão. Agradecemos comovidos a esses homens generosos e ajoelhamo-nos no convés, dando graças a Deus. Levaram-nos imediatamente para dormir, deram-nos vinho e alimentos, e no dia seguinte já nossas forças voltavam, mais pelo ânimo de nos vermos a salvo e a caminho de nossa terra do que por vontade do corpo. Então fui passear pelo tombadilho e, de repente, tive um grande susto, pois entre os passageiros avistei a minha boa Sillah, a quem deslealmente abandonara em Amboina. Ela, porém, não me reconheceu, pois eu tinha a barba pela cintura e o rosto mais negro do que o de um selvagem africano e ninguém me tomaria, nem ao meu companheiro, por cristãos. Fiquei bem quieto e tratei de esconder-me de Sillah. Sua majestade o rei da Inglaterra não se encontrava, nessa época, em paz com os holandeses e, por isso, o galeão não pôde tocar em Batávia. Contei ao capitão tudo o que me acontecera e o que padecera até aquele dia e todos os que me ouviram, até muitas pessoas nobres e distintas, ficaram muito admiradas com a minha longa odisséia. Então roguei encarecidamente ao comandante que me deixasse ficar no Cabo, que era a minha terra natal, oferecendo-me para trabalhar a bordo sem soldo até lá chegarmos. O nobre marinheiro concordou mas ordenou que eu fizesse primeiro a barba e ficasse de novo com a minha aparência de homem civilizado. Há muito eu já tinha vontade de fazê-lo mas obedeci contrariado, temendo que Sillah me reconhecesse. Barbeei-me, então, pois uma ordem do capitão vale tanto quanto uma do papa, com a diferença de que a bordo existem chicotes e vergas para acalmar os insubordinados. A primeira vez que cruzei com Sillah minhas pernas tremeram como se tivesse sido atacado de sezões mas a moça indiana não me reconheceu, tão mudado de aparência eu estava, após as longas privações sofridas. Nesta nova travessia ainda aconteceram muitos contratempos mas seria enfadonho relatá-los, pois já relatei e escrevi muito e com isso fiz mais do que era necessário. Finalmente, enxerguei a Montanha da Mesa e não contive o pranto ao rever o Cabo depois de tantos anos, ansioso também por saber se encontraria minha esposa e amigos com vida. Despedi-me do capitão com muitos agradecimentos, abracei e beijei o meu bom companheiro Koellen, e, finalmente, pisei a terra da qual estivera separado cinco anos. Quando cheguei à cidade só encontrei caras novas. Tinham feito uma nova e ampla rua de que muito me admirei, sem contar muitas outras mudanças e novidades. Percorri toda a cidade como se fosse um estranho que ali chegasse pela primeira vez. Atravessei o campo pelo mesmo caminho por onde me haviam levado à força cinco anos atrás, e as lágrimas saltavam-me dos olhos, entre jubiloso e receoso. Vi então as minhas terras, muito bem cuidadas, os milheirais e os vinhedos, os pomares de belas frutas, e meu coração ansiava por possuir de novo todas aquelas boas coisas, e voltar a ver minha cara esposa, e apertá-la contra o peito. Quando cheguei a minha casa, gelaram-se-me as veias e meu corpo ficou paralisado de medo e tremores. Escutei muitos gemidos e lamentos, gritos e altos prantos dentro de casa e não sabia por quê. Enquanto ali estava, indeciso e não me atrevendo a entrar, a porta abriu-se de repente e minha esposa saiu desvairada e lavada em lágrimas, não dando sequer pela minha presença. Então acerquei-me dela e estendi-lhe os braços. “Quem sois vós?” — perguntou ela, arregalando os olhos como se tivesse visto um espectro de outro mundo. “Sou vosso esposo e viajei cinco anos” — respondi. Então ela me reconheceu e ficou muito assustada. “Por que chorais tanto e estais tao aflita?” — indaguei carinhosamente. Ela, muito agitada, suplicou que me calasse e levou-me para dentro de casa mas não para nossos aposentos. Empurrou-me apressadamente pela escada do sótão e quando aí chegamos fechou a porta com muita cautela, e tudo isso me deixou muito perplexo. Em voz baixa, pediu-me então que lhe contasse fielmente tudo o que me acontecera, sem faltar à verdade. Contei-lhe tudo, apenas ocultando, por mutias e compreensíveis razões, o caso de Sillah e as farras na estalagem, quando provei até ópio. “Por que não me escrevestcs, como vos pedi?” — perguntava ela, banhada em lágrimas. Contou-me então tudo o que acontecera na minha ausência. Esperara por mim dois anos, com toda a fidelidade. Depois, supondo-me perdido para sempre, desposara outro homem, de nome Ehlers, a quem agora pertencia, juntamente com minhas fazendas e tudo o que antes fora minha propriedade. Mas esse Sr. Ehlers estava agonizando e por essa razão minha esposa, que então era a esposa dele, estava chorando e lamentando-se tanto. E então ela disse: “Ficai escondido até que ele morra . ” E eu fiquei escondido no sótão durante cinco dias e cinco noites, em grande aflição e miséria, mas não me esquecia de agradecer ao Senhor, de todo o coração. Sua benevolência e a maravilhosa justiça de Suas decisões, pois no sexto dia houve Ele por bem chamar o Sr. Ehlers a Sua augusta presença e certamente lhe reservou dignos aposentos em Sua mansão celestial. Desci cautelosamente do desconfortável sótão, vesti bonitas e vistosas roupas e assim me tornei de novo um marido e homem rico, cercado pelo carinho de minha boa esposa, a quem consolei em sua tristeza. Nunca mais me entreguei aos antigos vícios da gula e luxúria, vivendo correta e dignamente. E assim Deus me ajude doravante a ficar no bom caminho com Sua inesgotável misericórdia, amém. E que assim seja para Sua maior glória, amém!

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